Ford terá picape com Inteligência Artificial que nunca ficará velha
A Ford chamou atenção e ganhou espaço em portais, TVs e nas mídias sociais dos quatro cantos do mundo, com a apresentação, no início deste mês, da BlueOval City. Trata-se de uma gigafábrica, que está sendo construída em Stanton, no Estado norte-americano do Tennessee – muito conhecido no Brasil por causa do “whiskey” Jack Daniel’s.
Lá, a marca investirá US$ 5,6 bilhões (o equivalente a R$ 28,3 bilhões) para produzir nada menos que 500 mil picapes elétricas, anualmente, começando por um modelo que atende pelo codinome de Project 3 e que será seu primeiro veículo definido por software – do inglês ‘Software-Defined Vehicle’ ou SDV.
“Vamos revolucionar o segmento de caminhonetes, nos Estados Unidos, a partir de nossa experiência centenária na produção de utilitários. Teremos uma plataforma de capacidades infinitas para EVs, que, esperamos, será uma referência global em termos de tecnologia e design”, promete o presidente-executivo (CEO) da montadora, Jim Farley.
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A “Cidade do Oval Azul” começa a operar em 2025, mas, antes de seguirmos detalhando o plano para lá de ambicioso da Ford, é preciso contextualizar as coisas para o leitor.
A fala de Farley têm um objetivo muito mais importante do que, apenas e tão somente, mostrar que a Ford se prepara para a virada da eletromobilidade: ela tem a – dificílima – missão de convencer os investidores a manterem seu dinheiro na marca que, nos últimos dois anos, perdeu US$ 3 bilhões (o equivalente a R$ 15,2 bilhões) só com EVs e serviços digitais – agrupados na subsidiária Model.
“Se seguíssemos fazendo o de sempre, não mudaríamos o suficiente para o futuro”, confessa o diretor financeiro (CFO), John Lawler. “Vamos relatar nossas finanças minuciosamente, a partir de agora, e já adianto que só teremos lucro, nestes segmentos, a partir de 2026, quando esperamos ganhos não maiores do que 8%. Até lá, as vendas dos modelos tradicionais, equipados com motores a combustão interna, é que vão compensar o prejuízo”, acrescentou.
Hoje, a Ford tem apenas três carros elétricos em seu portfólio: a picape F-150 Lightning, o Mustang Mach-E e o furgão Transit. Só com este trio, a marca perdeu US$ 900 milhões (o equivalente a R$ 4,6 bilhões), em 2021, e US$ 2,1 bilhões (mais de R$ 10,5 bilhões), em 2022, ao passo que a subsidiária Blue, que concentra os veículos tradicionais e os modelos híbridos, fechou o mesmo intervalo com ganhos de US$ 3,3 bilhões (o equivalente a R$ 16,7 bilhões) e US$ 6,8 bihões (R$ 34,5 bilhões), respectivamente.
Apenas para o leitor ter uma ideia do que é o negócio automotivo, o braço financeiro da companhia, a Ford Credit, fechou o ano passado com ganhos de US$ 2,7 bilhões (R$ 13,6 bilhões) – com a venda de crédito e os financiamentos feitos para seus próprios clientes.
Nos últimos dois anos a Ford perdeu 40% de sua capitalização de mercado, ou quase US$ 33 bilhões (R$ 165 bilhões). Para reverter esse quadro, a marca promete um carro elétrico “melhor e diferente do de ontem, a cada manhã, que aprenderá como seu motorista o usa e receberá atualizações de software todos os dias da semana, todas as semanas do ano e pelos próximos anos”, nas palavras do CEO, Jim Farley.
O que ele vende para os investidores, tentando salvar as finanças da marca, é a primeira picape SVD legitimamente norte-americana e com o selo “made in Tennessee”.
SDV: a sigla do futuro
Os SDVs não são assunto nas mesas de bar ou na roda de amigos, no Brasil. Mas a Ford aposta todas as suas fichas nesta nova base, que corresponde à futura geração de automóveis, em que o "hardware" – ou seja, a parte técnica atual que vai do trem de força, passando pelos conjuntos de direção, freios e suspensão, aos sistemas multimídia e de navegação – deixará de ser a grande referência, para dar lugar a um novo conceito de mobilidade, em que o próprio carro gerenciará seu funcionamento, adicionará funcionalidades e habilitará novos recursos por meio de atualizações.
Nos veículos definidos por software, o foco deixa de ser os conjuntos eletromecânicos e o mote passa à inteligência artificial e à conectividade contínua e expansível, que vai garantir maior segurança (com novos recursos de assistência e anticolisão), deslocamentos mais convenientes (infoentretenimento a bordo), aquisição de novas funcionalidades ‘over-the-air’, diagnose em tempo real e, por fim, condução totalmente autônoma.
Em outras palavras, a marca quer compensar o atraso na eletrificação de sua gama.
É óbvio que o sujeito não vai chegar no salão do concessionário e pedir um SDV para o vendedor, como quem pede água para o garçom num baile de debutantes. Este é um conceito que parece abstrato, mas que, em termos de engenharia, se materializará em uma segunda geração de plataformas 100% elétricas – que, por sua vez, darão vida a uma segunda geração de elétricos, ainda mais eficientes.
Os veículos definidos por software também têm vantagem ambiental em relação aos convencionais (que foram definidos por “hardware”, ou seja, a partir de uma base eletromecânica).
“Primeiro, porque são livres de emissões e, segundo, porque a supressão do cofre do motor resultará em carros ainda mais compactos. Isso sem falar na quebra de paradigma que é você comprar um 0 km, hoje, e melhorar a performance dele, daqui a cinco anos, apenas com a atualização do seu sistema operacional”, conta o presidente da Nexteer Automotive, líder global em tecnologias para controle dinâmico, Robin Milavec.
Basicamente, os modelos autônomos (AV) do futuro serão desenvolvidos sobre bases SDV, mas isso não quer dizer que este conceito de desenvolvimento não poderá dar via a carros populares, por exemplo.
“É uma mudança de paradigma, principalmente pelo envolvimento de provedores de ‘middleware’, que englobam softwares e serviços em nuvem com recursos comuns para aplicativos. O ‘middleware’ é uma espécie de conectivo entre a aplicação, o tráfego de dados e usuários”, aponta o vice-presidente para as Américas da ETAS, fornecedora de soluções cibernéticas, Eric Cesa.
Parece complicado, mas é esta complexidade que permitirá aos SDVs um desenvolvimento contínuo, com atualizações disponíveis durante toda a vida útil do veículo. “É como um smartphone com as suas atualizações. Agora, pense nisso em relação à segurança do automóvel”, provoca Cesa.
Transição completa
Como se vê, soluções integradas de software e hardware desempenham um papel fundamental no desenvolvimento automotivo. “Hoje, a experiência do motorista ainda é definida, principalmente, pelo hardware, mas isso mudará rapidamente para o software”, frisa Milavec, da Nexteer.
“Os automóveis atuais ‘morrem’ no final da linha de produção já que, a partir da lá, só envelhecem. Mas, em sentido oposto, estamos falando de atualizações que garantirão um avanço contínuo para veículos que já estão nas ruas e esta possibilidade será explorada, comercialmente, das mais variadas formas”, projeta Milavec.
“Amanhã, a marca de que você é cliente vai oferecer uma direção elétrica (EPS) que não só detectará as condições do piso, mas que ajustará a assistência de modo que a sensação do condutor, ao volante, seja sempre a mesma – como na suspensão ativa. Para isso, precisamos de um software que parametrize as mais variadas superfícies e converta estas informações em dados para ajustar o ‘feeling’ do motorista, de acordo com as condições de rodagem”, conclui.
Antes que o leitor entre em parafuso, é bom deixar claro que os SDVs de 2023 representam, apenas e tão somente, um primeiro passo da indústria automotiva. A transição completa demandará tempo, até porque tudo – recursos de segurança e funcionalidade, sistemas operacionais e conectividade – evoluirá a partir de regulamentações, ou seja, das legislações nacionais e internacionais.
Olhando apenas para as interfaces de comunicação, falamos de veículo para veículo (V2V), veículo para pedestre (V2P), veículo para infraestrutura (V2I) viária e veículo para rede (V2N). A Hyundai, por exemplo, anunciou um investimento de US$ 12,8 bilhões (o equivalente a R$ 65 bilhões), só em SDVs.
Como se vê, a Ford fugiu do atraso tupiniquim, praticamente abandonando o mercado brasileiro, para agregar uma plataforma escalável.
Isso porque a cada dia que passa, a estupidez – que, atualmente, se manifesta na crença de que combustíveis sintéticos salvarão os motores térmicos – nos aparta da tríade do conhecimento que pautará os automóveis do futuro: não desenvolvemos sistemas inteligentes, não temos softwares à altura dos SDVs e seguimos aferrados às funções mais básicas de um veículo automotor, como girar o volante, apertar os pedais, abrir e fechar os vidros elétricos. Ficamos para trás...
Jornalista Automotivo