Como Ferrari e Maserati se preparam para o amanhã?
Ferrari e Maserati são, indubitavelmente, sonhos de consumo para nós, brasileiros, especialmente para os “apaixonados por automóveis”. Mas há dois verdadeiros abismos que nos separam dessas marcas: primeiro, o abismo financeiro manifesto na simples conversão dos preços de qualquer um de seus modelos para o Real, que já é suficiente para transformar o sonho em pesadelo e, segundo, o abismo institucional, já que os tupiniquins não fazem a mínima ideia do que uma Ferrari ou um Maserati representam em seu país de origem e nem em seus principais mercados.
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Reunimos, a seguir, as respostas do diretor comercial e de marketing da marca do ‘cavallino rampanti’, Enrico Galliera, e do presidente-executivo (CEO) da marca do tridente de netuno, Davide Grasso, para três importantes questões e cada um deles contou um pouco do que pensa e como se prepara para o futuro.
“A virada da eletromobilidade traz uma oportunidade de
sobrevivência neste negócio, pois é a única maneira de a indústria automotiva
manter e aumentar o valor agregado de seu produto, em longo prazo. É preciso
estar pronto, totalmente adaptado para a produção de EVs”, resume Grasso.
No ano passado, a Maserati vendeu 27,1 mil unidades em nível global, contra
13,6 mil unidades da Ferrari no mesmo período, mas amargando uma queda de 49%
na sua produção.
Enquanto a Ferrari registrou lucro – antes de juros, depreciação e amortização fiscal (EBITDA) – de 2,45 bilhões de euros, em 2023 (o equivalente a R$ 13,1 bilhões), a Stellantis, grupo controlador da marca do tridente, registrou queda de 10% e entrou neste ano com uma dívida de 27,3 bilhões de euros (R$ 146,8 bilhões), mesmo com vendas globais de 6,1 milhões de unidades – um volume comercial 450 vezes maior que o da Ferrari.
“Sob o jugo da Stellantis, a Maserati aposentou seus motores
V8 e, agora, aposta todas suas fichas nos EVs. A transição energética completa,
neste sentido, parece uma boa jogada, mas será difícil recriar a sensação de
dirigir um superesportivo da marca com a eletrificação”, avalia o
vice-presidente de análise da AutoForecast Solutions, Sam Fiorani.
Mais conservador, Galliera foca naquilo que fez da Ferrari, da pequena Maranello, uma referência global: “Somos fabricantes de superesportivos e, hoje, alcançamos com o Purosangue – primeiro SUV da marca – aquilo que não conseguimos no passado, quando o desenvolvimento de um automóvel de quatro portas não conseguiu a mesma performance que caracteriza nossos modelos. Agora, temos mais tecnologia, suspensões ativas, modos de condução que permitem a redução de rolagem e assim por diante. Não vejo limites para qualquer tipologia”, pontuou o diretor comercial da Ferrari, sem entrar na questão da eletrificação que, ao que parece, é um tema que será tratado futuramente.
A impressão que fica é de que a Maserati apostará todas as
suas fichas na virada da eletromobilidade, enquanto a Ferrari seguirá ampliando
seus mercados e, mesmo que veladamente, aumentando volumes.
Como é e o que se espera de uma marca de prestígio 100% italiana?
Davide Grasso – “Sem Itália, não existe Maserati, até porque toda nossa gama –
a marca pertence ao grupo Stellantis – é totalmente projetada, desenvolvida e
produzida no país, de onde é distribuída para mais de 70 países em todo o
mundo. Para ser ainda mais claro, acrescentaria que se um automóvel com nossa
marca tiver sido, for ou vier a ser fabricado fora da Itália é porque, na
prática, nunca foi e jamais será um autêntico Maserati. Estamos totalmente
orientados para crescermos em médio prazo dentro do nosso país, em que pese o
fato de exportamos 86% da produção. Já no longo prazo, o objetivo é elevar
nosso posicionamento no segmento de alto luxo”.
Enrico Galliera – “Bom, posso dizer que os mercados mudaram muito e, hoje,
trazem dinâmicas bem diferentes de país para país. Há 15 anos, os asiáticos já
tinham grande interesse pela Ferrari, mas havia uma enorme diferença na forma
de lidar com um cliente italiano, alemão ou norte-americano em comparação com
um chinês, um indonésio ou um malaio. Isso praticamente acabou, a cultura e o
conhecimento de nossos produtos evoluíram muito e se, antes, bastava possuir
uma Ferrari, hoje os clientes querem envolvimento, querem fazer parte de
encontros e eventos”.
São duas marcas que se preparam de formas diferente para o futuro?
Davide Grasso – “Há uma visão clara dentro da Maserati, que vem tomando forma
há alguns anos. Desde que relançamos a marca, apostando numa nova série de
produtos e, sobretudo, dando os primeiros passos rumo à eletrificação com SUV
Grecale, que agora disponibilizamos em uma versão totalmente elétrica, chamada
Folgore – nome que batiza todas as versões EVs de seus modelos –, seguimos
fiéis rumo à meta de nos tornarmos a primeira marca de alto luxo italiana com
zero emissões e, isso, até 2028. Junto do Grecale, eletrificamos o Granturismo
e, nos próximos meses, faremos o mesmo com o Grancabrio. Estamos, portanto,
dois anos adiantados em relação ao planejamento original”.
Enrico Galliera – “Em 2010, quando cheguei a Maranello, encontrei uma empresa que chegara num ponto em que tinha que decidir o que faria para seguir crescendo e até mesmo se queria, realmente, crescer em termos de volume. O mercado estava mudando: as pessoas ainda compravam Ferraris, mas tinham poucas oportunidades de utilizá-las. Fizemos, então, um investimento importante que foi criar plataformas de marketing baseadas no desfrute de nossos produtos, para entusiasmar os compradores um pouco como o que acontecia antes com o uso dos carros em pistas – nos ‘track days’. Mais recentemente, com o lançamento do Purosangue, descobrimos que não devemos nos impor limites. Entramos em um segmento – dos SUVs – em que não tínhamos experiência e conseguimos fazê-lo mantendo o DNA da Ferrari. Como sempre acontece quando imaginamos um novo produto, os engenheiros olham para nós e dizem que estamos malucos, mas sempre há uma forma de tornar tudo em realidade.”
Num mundo em disrupção, como manter a aura de exclusividade? A máxima da Ferrari, de produzir ‘um modelo a menos do que o mercado busca,’ ainda vale?
Davide Grasso – “Em 2020, iniciamos investimentos na fábrica de Modena, uma planta com 85 anos de história, onde trabalham mais de 800 pessoas. Atualmente estamos ajustando a capacidade de produção do MC20, após um ‘downsizing’ no final do ano passado, devido à crise chinesa e à desaceleração do mercado norte-americano que impactaram também outros setores. No entanto, no segundo trimestre deste ano, pretendemos retomar nossa capacidade máxima de produção. Também temos grandes investimentos em inovação e qualidade, pilares fundamentais neste nicho. Estudamos a fundo o processo de crescimento e evolução do mercado com foco indistanciável no consumidor e, ao fazer um planejamento de longo prazo para superesportivos icônicos, percebemos que o mercado de automóveis muda rápida e radicalmente. Hoje, um sedã que reinterprete o conceito de sofisticação e desempenho é mais desejável do que um modelo tradicional, grande, potente e luxuoso”.
Enrico Galliera – “Produzir menos automóveis do que a demanda de mercado ainda é uma regra para a Ferrari, mas com um significado diferente, como se pode ver pela nossa entrada em novos segmentos: o SF90 não existia, o Purosangue não existia e a própria Roma não existia. O conceito que adotamos foi o seguinte: mantenho a gama que tenho, aumento um pouquinho a produção, mas só para atender os novos mercados, sem comprometer a exclusividade de nossa marca, que é nosso maior valor. Enquanto isso, entramos em novos segmentos e conquistamos novos clientes que, sem este nosso movimento, nunca comprariam uma Ferrari. Resultado: mantemos a exclusividade, mas vendemos mais carros”.
Jornalista Automotivo