Com prejuízos bilionários, ainda vale a pena produzir carros no Brasil?
Por Homero Gotardello
Os fabricantes de automóveis instalados no Brasil estão diante de uma encruzilhada, revelada por documentos do governo paulista consultados pela agência Reuters. Um embaraço sublinhado pelo jornal Auto News como um “recuo profundo” e que, há pelo menos uma década, vem sangrando as matrizes e causando uma verdadeira hemorragia em seus cofres.
Segundo dados divulgados por ambas as fontes, gigantes do setor automotivo só estão sobrevivendo no país devido a aportes bilionários de recursos, o que, para além da luz vermelha acesa com o fechamento das fábricas nacionais da Ford, faz soar o alarme daquele que ainda é um dos setores mais importantes da indústria brasileira.
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Só três marcas, Volkswagen, General Motors e Toyota, injetaram US$ 7 bilhões – o equivalente a quase R$ 35 bilhões – em suas subsidiárias locais desde 2011, e isso não é nada bom.
“A produção está se recuperando muito mais lentamente do que o previsto, e levará algum tempo para se refazer das perdas de 2020”, avalia o diretor de operações para a América Latina da MSX Internacional, líder em serviços de tecnologia da informação e terceirização dos processos de negócio (BPO), Marcus Romero.
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Os gargalos da indústria automotiva nacional
E na encruzilhada da indústria automotiva brasileira há uma placa, com a seguinte pergunta: compensa produzir carros no Brasil?
Desde 2019, sabe-se que vender no mercado brasileiro um modelo produzido no México sai mais em conta do que fabricá-lo localmente. Um estudo da PricewaterhouseCoopers (PwC), publicado naquele ano, já apontava que a economia com custos de produção, logística e impostos era da ordem de 12%.
“O mercado esperava voltar a números anteriores aos de 2014, quando as vendas internas chegavam a 3 milhões de unidades anuais. Com o impacto da pandemia, dificilmente isso será alcançado nos próximos 12 meses, mas a Covid não foi o único fator que influenciou – negativamente”, avalia Romero.
Um cálculo da “Reuters” aponta que a Ford perdeu, em média, US$ 2.000 (ou R$ 9,9 mil) por veículo vendido no país nos últimos oito anos.
Antes de confirmar o encerramento da produção nacional, em janeiro, a Ford já havia perdido US$ 11,6 bilhões (ou R$ 57,5 bilhões) no Brasil só na última década.
“Com um ambiente econômico desfavorável, menor demanda e grande capacidade ociosa, optamos por uma modelo de negócios mais enxuto. Não havia outra opção viável”, disse, em março, o então presidente da companhia para a América Latina, Lyle Watters. Que, em julho deste ano, assumirá a divisão de automóveis da Ford chinesa.
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O caso Territory
Sua gestão por aqui já tinha sido marcada pelo lançamento do SUV Territory, em agosto do ano passado, que nada mais é do que o Yusheng S330 chinês, produzido para a Ford pela Jiangling Motors em Nanchang, uma metrópole de 5 milhões de habitantes que é a capital da província de Jiangxi.
O Territory simboliza uma guinada dupla que, mesmo contrariando as leis da física, permite à montadora seguir em dois caminhos diferentes na encruzilhada.
De um lado, ela terceiriza a fabricação com uma companhia chinesa que já lhe entrega o veículo pronto, por um valor inferior ao de seus próprios custos; de outro, permite que a Ford remarque o produto a fim de obter uma margem de lucro bem mais alta do que praticava, quando tinha que arcar com as despesas da linha de montagem.
Não é preciso ser engenheiro de produção para imaginar que isso se dá, em grande parte, às custas da precarização do produto, mas se o consumidor não liga para isso, tem-se uma solução para remunerar melhor os acionistas e manter as portas abertas, preservando os empregos na medida do possível.
Daí que o Yusheng S330, que parte de menos de R$ 70 mil em seu país de origem, é vendido no Brasil com a marca Ford nos seus concessionários por R$ 180 mil. É ou não é um “negócio da China”?
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Exportar é o que importa
Nunca é demais lembrar que, nos últimos dez anos, o Governo Federal concedeu subsídios e incentivos da ordem de R$ 40 bilhões (o equivalente a US$ 8 bilhões, sendo US$ 2,6 bilhões só para a Ford) para o setor, mas esta cifra astronômica não foi suficiente para garantir a qualificação de nosso parque industrial para uma inserção no mercado mundial.
Por isso, enquanto o México envia quase 80% de sua produção de veículos para o exterior (principalmente os Estados Unidos, aproveitando-se do privilégio geográfico de serem países vizinhos), as montadoras brasileiras viram suas exportações caírem 30% em 2020, recuando dos R$ 9,3 bilhões de 2019 para R$ 6,7 bilhões no ano passado.
No primeiro trimestre de 2021, as vendas externas cresceram quase 8%, mas a participação das cerca de 90 mil unidades embarcadas na produção nacional não chegou a 15%.
Na semana passada, a notícia de que a chinesa Great Wall estaria interessada em adquirir e reabrir a fábrica fechada pela Mercedes-Benz em Iracemápolis (SP) foi comemorada, mas não há como comparar um negócio desse com o anúncio da General Motors de que vai investir US$ 1 bilhão no complexo mexicano de Ramos Arizpe para produção de veículos elétricos.
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Realmente, parece que o único segmento que não está dando para trás por aqui é o de veículos pesados e máquinas:
“As máquinas agrícolas e veículos comerciais, utilizados na produção e transporte de mercadorias no Brasil, têm enfrentado menos desafios do que o restante da indústria automotiva, pois se beneficiam do crédito disponibilizado ao setor”, avalia Marcus Romero, da MSX Internacional.
Fato é que, dentre os três principais apontamentos do “Automotive Landscape 2025”, estudo conduzido pela Roland Berger Strategy Consultants, o Brasil não se enquadra em nenhum: “desmotorização” dos grandes centros urbanos, uma participação de até 50% dos modelos híbridos e elétricos nas vendas, e conectividade ininterrupta nos zero-quilômetro.
Por outro lado, seremos atingidos pelo mesmo deslocamento da produção para a Ásia, que subtrairá 300 mil postos de trabalho na indústria automotiva europeia.
“As companhias operarão mais globalmente e uma nova configuração organizacional surgirá”, prevê o sócio da consultoria e coautor do estudo, Wolfgang Bernhart. “Os trabalhadores terão que atender novos requisitos e o centro de gravidade do setor será deslocado”.
Como se percebe, há um abismo cada vez maior entre a realidade global das marcas e a estagnação do setor automotivo brasileiro. Infelizmente, o gigante dormiu em berço esplêndido e, agora, não dá para saber nem se um dia irá acordar. E pior, talvez acorde tarde demais…
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