A era das startups que ganham dinheiro vendendo carros que não existem

Financiadas por bancos públicos e com projetos mirabolantes que dificilmente saem do papel, marcas de veículos elétricos multiplicam seus valores em até 1.500 vezes
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05.10.2021 às 20:24 • Atualizado em 23.12.2021
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Financiadas por bancos públicos e com projetos mirabolantes que dificilmente saem do papel, marcas de veículos elétricos multiplicam seus valores em até 1.500 vezes

Por Homero Gottardello

A virada da eletromobilidade, como vem sendo chamado o movimento global do setor automotivo que vai substituir os tradicionais motores a combustão interna por unidades elétricas, criou espaço para centenas de novos fabricantes. 

O que pouca gente se dá conta é que o terreno da inovação é fértil para todo tipo de empreendedor, dos aventureiros aos espertalhões. Por isso, esperava-se que a imprensa especializada servisse como uma espécie de filtro entre aquilo que, realmente, existe e os delírios futuristas. 

Ocorre que o “subjornalismo” vive de cliques e curtidas e, na briga para conquistar engajamento, os veículos de comunicação viraram caixas de ressonância para todo tipo de factóide. Na semana passada, por exemplo, o noticiário foi sacudido pelo anúncio do lançamento do sedan Air, da Lucid Motors, empresa que não atende sequer pelo nome de montadora, mas de startup. 

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O modelo, que combina avanço e elegância em seus respeitáveis 4,97 metros, promete autonomia recorde de 840 quilômetros, sem necessidade de recarga e, isso, entregando mais de 1.000 cv de potência – com a motorização Dual ActiveCore.

Não é preciso ser engenheiro mecânico para perceber que, só por estes dois números, trata-se de um automóvel capaz de quebrar paradigmas, até porque concilia desempenho e economia de uma forma inédita. 

Financiadas por bancos públicos e com projetos mirabolantes que dificilmente saem do papel, marcas de veículos elétricos multiplicam seus valores em até 1.500 vezes
Lucid Air é promessa de um sedan com mais de 1.000 cv de potência e 800 km de autonomia

A boa notícia é que, pelo menos de acordo com a agência reguladora norte-americana, a autonomia prometida é factível. Já a má é de que, ao contrário do que o noticiário leva a crer, o Lucid Air não existe como produto. 

É que desde o final de 2016, quando seu projeto foi revelado, ele mantém o status de protótipo. Ou seja, é um veículo indisponível para venda e que, mesmo se você tivesse dinheiro e coragem para comprá-lo da forma como se encontra, seria impossível rodar a bordo dele, pelo menos de forma legal, simplesmente porque não há como emplacá-lo.

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“A Lucid Motors é conhecida, hoje, como fornecedor de baterias para a Fórmula E”, pontua o jornalista americano Eric Stafford, da revista Car and Driver, a principal do segmento nos Estados Unidos. 

“Como se trata de uma startup, que nunca fabricou um automóvel anteriormente, há dúvidas em relação à formatação de uma rede assistencial para manutenção de seus veículos. A marca diz que vai competir diretamente com a Tesla e, só para isso, seria necessário dar uma garantia de 50 mil milhas ou quatro anos de cobertura ilimitada para seus produtos”, acrescentou. 

Stafford não desmerece a Lucid em sua análise, nem põe em dúvida sua capacidade de, realmente, sair do papel. Todavia, deixa claro que o Air 2022 não foi sequer submetido aos crash tests da Administração Rodoviária Nacional de Tráfego (NHTSA) ou do Instituto de Segurança Viária (IIHS) das seguradoras.

Na semana retrasada, publicamos uma coluna que mostrou como duas novas montadoras chinesas de veículos elétricos foram à bancarrota antes mesmo de entregarem seus primeiros automóveis – e uma delas chegou a promover a pré-venda de um SUV que prometia Nível 3 de automação!

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Promessas e falência

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Byton M-Byte é exemplo de promessa não cumprida de supercarro elétrico

O leitor mais desconfiado já deve ter percebido que, enquanto gigantes do setor (como o Grupo Volkswagen e a Stellantis) correm contra o relógio para cumprir o cronograma de eletrificação estabelecido pela União Europeia, marcas das quais – até então – ninguém nunca ouviu falar surgem do nada e com lançamentos que parecem vindos do futuro. 

“Somos, realmente, uma startup e produziremos mais do que automóveis, mas dispositivos inteligentes sobre rodas”, disse o ex-executivo da BMW e fundador da Byton, Daniel Kirchert, ao New York Times, há exatamente 18 meses. 

Kirchert prometia que seus automóveis teriam o mesmo impacto dos smartphones quando estes surgiram nas lojas, empurrando os antigos celulares para a Idade da Pedra. A marca investiu US$ 1,7 bilhão – o equivalente a quase R$ 10 bilhões – na construção de uma fábrica em Nanjing, China, com capacidade de produção para 150 mil veículos anuais.

A Byton tinha um futuro tão promissor que, em janeiro deste ano, a gigante do setor eletrônico Foxconn anunciou um investimento extra de US$ 200 milhões (R$ 1,01 bilhão) na montadora, que faliu meses depois, em julho, sem fabricar um único automóvel. 

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Seu M-Byte, SUV apresentado com toda pompa e circunstância em Las Vegas (EUA), durante a CES 2018, maior feira de tecnologia do mundo, nunca deixou de ser um carro-conceito.

De volta à Lucid Motors, seu presidente-executivo (CEO), Peter Rawlinson, é um veterano da Tesla que recebeu o aporte de US$ 1 bilhão (R$ 5,45 bilhões) de um fundo de investimento da Arábia Saudita para construir sua linha de montagem, no Arizona, e iniciar as vendas do festejado Air no final do ano – do ano passado, vale frisar. 

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Byton recebeu mais de R$ 11 bilhões em investimentos e nunca conseguiu tirar seus carros do papel

Bom, 2022 já se avizinha e, até agora, não existe nada de concreto além do confete jogado pela imprensa especializada no seu noticiário. 

“Construir um automóvel é difícil e caro. Sem dúvidas, muitas das startups que vemos hoje não conseguirão fazê-lo e a verdade é que muitas já até desistiram”, comenta o analista Jack Ewing, que cobre a indústria automotiva europeia para o New York Times desde 2010. 

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“Entre os anos de 1970, 80 e 90, a indústria automotiva encerrou mais marcas – vide Pontiac, Saab e Plymouth – do que viu nascer. Mas o advento dos modelos elétricos proporcionou uma rara oportunidade para novas montadoras surgirem”, analisa.

Ewing chama atenção para o fato de, na China e nos Estados Unidos, existir uma grande safra de novas marcas que pretendem alcançar o mesmo sucesso da Tesla, aproveitando-se da inércia das gigantes tradicionais do setor. 

Mas a verdade, no entanto, é que até mesmo a grande referência de êxito deste nicho, a própria Tesla, não consegue emplacar tudo aquilo que anuncia. 

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O curioso caso da Tesla Cybertruck

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Tesla Cybertruck: mais de 1 milhão de pedidos e nenhuma unidade produzida até hoje

A picape Cybertruck, um dos elétricos mais aguardados dos últimos anos, que vem sendo prometido desde 2019, ficou para sabe-se lá quando. O utilitário futurista já tinha até preços e um comprador brasileiro desembolsou quase R$ 1 milhão para garantir um exemplar da versão topo de linha que, se bobear, ele nunca irá conhecer.

“Carros elétricos são mais fáceis de projetar e construir do que automóveis convencionais, com motor a combustão interna. Isso porque têm muito menos partes móveis, mas até mesmo a Dyson – marca britânica de aspiradores de pó – chegou a anunciar que ingressaria no segmento automotivo. Logo depois, reconheceu que ‘não tornaria seu projeto comercialmente viável’ e abandonou seus planos”, destaca Ewing. 

Fato é que se, por um lado, as startups fazem um verdadeiro alarde para revelarem os automóveis que, em um futuro nunca muito bem definido, irão vender, por outro, são muito discretas na hora de comunicarem atrasos e até mesmo o encerramento de suas atividades. 

A Tesla, por exemplo, se limitou a comunicar os acionistas que tanto a picape Cybertruck quanto o caminhão Semi só serão entregues “a partir de 2022”.

O caso do Cybertruck pode ser um divisor de águas em um futuro próximo, já que a própria Tesla confirmou que ter mais de 1 milhão de pedidos para sua picape elétrica, capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em apenas 2,9 segundos e rodar até 800 quilômetros sem necessidade de recarga das baterias.

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Cybertruck já teve sua produção adiada algumas vezes. Nova previsão é para 2022

Fábricas de carro ou de ilusões?

Pessoas minimamente, mais bem informadas já se deram conta de que marcas como a NIO, a “Tesla chinesa”, são mais fábricas de dinheiro do que de carros elétricos. 

“Em apenas um ano, as startups automotivas obtiveram US$ 50 milhões em dinheiro do contribuinte norte-americano, fazendo seus valores de mercado alcançarem US$ 75 bilhões com base em especulação”, calcula a jornalista Eliza Haverstock, da Forbes

A NIO, por exemplo, tinha ações vendidas a US$ 3 na Bolsa de Nova York em janeiro de 2020. Em abril, ameaçada de falência, sua subsidiária norte-americana obteve US$ 5,4 milhões em empréstimo do governo californiano para proteção de empregos. No mesmo mês, as prefeituras de Heifei e Anhui, na China, emprestaram US$ 1 bilhão para a empresa. Depois disso, suas ações subirem a US$ 46.

Para quem não atua no mercado financeiro, a conta é complicada, mas, na prática, esta manobra rendeu uma capitalização de inacreditáveis US$ 60 bilhões – o equivalente a mais de R$ 325 bilhões – para a NIO. 

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NIO quer ser a "Tesla chinesa", mas vem se sustentando à base de financiamentos públicos

“A marca partiu de uma dívida de US$ 6 bilhões e se encontrava em uma situação de caixa tão desesperadora que já havia alertado os acionistas sobre sua provável incapacidade de continuar em atividade. Então, tudo isso se operou e, de repente, seu patrimônio líquido saiu do vermelho e chegou a US$ 7 bilhões”, expôs Haverstock.

Ou seja, a disparada das ações da NIO, a partir dos empréstimos de bancos públicos chineses e norte-americanos a juros de 1% ao ano, é o que mantém a roda girando. Em abril de 2022, quando vencerão os contratos, a marca terá feito dinheiro de sobra para pagar seus credores e ainda seguir com os papéis valorizados, mesmo sem ter produzido nenhum veículo.

Em outras palavras, estas startups – e aí incluem-se nomes como Hyliion, Luminar Technologies, Nikola Motor, Canoo, Velodyne Lidar e Lordstown Motors – parecem não estar muito aí para a produção efetiva de veículos elétricos.Seu verdadeiro negócio é o mercado financeiro. 

Se uma, duas, cinco, dez delas ou todas elas, simplesmente, falirem antes de montar um único carro, seus donos e investidores (os mais espertos e expertos) terão enchido os bolsos, enquanto as revistas elogiam carros que nunca passarão de protótipos ou projeções de computador. Então, seja bem-vindo ao incrível mundo dos “fake cars”!

Imagens: Divulgação

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